quinta-feira, 18 de março de 2010

O texto abaixo é um bom exemplo de variação linguística.

SANTOS NOMES EM VÃO

Drama verídico e gerado por virgulazinhas mal postas, cúmplices de tantas reticências.
Praxedes é gramático. Aristarco também. Com esses nomes não poderiam ser cantores de rock. Os dois trabalham num jornal. Praxedes despacha as questiúnculas à tarde. Aristarco, à noite. Um jamais concordou com uma vírgula sequer do outro, e é lógico que seja assim. Seguem correntes diversas. A gramática tem isso: é democrática. Permitindo mil versões, dá a quem sustenta uma delas o prazer de vencer.

Praxedes é um santo homem. Aristarco também. Assinam listas, compram rifas, ajudam quem precisa. E são educados. A voz dos dois é mansa, quase um sussurro. Mas que ninguém se atreva a discordar de um pronome colocado por Praxedes. Ou de uma crase posta por Aristarco. Se a conversa ameaça escorregar para os verbos defectivos ou para as partículas apassivadoras, melhor escapar enquanto dá. Porque aí cada um deles desanda a bramir como um leão. [...]

Para que os dois não se matem, o chefe pôs cada um num horário. Praxedes, mais liberal (vendilhão, segundo Aristarco), trabalha nos suplementos do jornal, que admitem uma linguagem mais solta. Aristarco, ortodoxo (quadradão, segundo Praxedes) assume as vírgulas dos editoriais e das páginas de política e economia. [...]

Sempre estiveram a um passo do quebra-pau. Hoje, para festa dos ignorantes e dos mutiladores do idioma, parece que finalmente vão dar esse passo. É dia de pagamento e eles se encontram na fila do banco. Um intrigante vem pondo fogo nos dois há já um mês e agora ninguém duvida: nunca saberemos quem é o melhor gramático, mas hoje vamos descobrir quem é o mais eficiente no braço.

Aristarco toma a iniciativa. Avança e despeja:

- Seu patife, biltre, poltrão, pusilânime.

Praxedes responde à altura:

- Seu panaca, almofadinha, calhorda, caguincha.

Aristarco mete o dedo no nariz de Praxedes:

- É a vossa progenitora!

Praxedes toca o dedo no nariz de Aristarco:

- É a sua mãe!

Engalfinham-se, rolam pelo chão, esmurram-se.

Quando o segurança do banco chega para apartar, é tarde, Praxedes e Aristarco estão desmaiados um sobre o outro, abraçados, como amigos depois de uma bebedeira.

O guarda pergunta à torcida o que aconteceu. Um boy que viu tudo desde o início explica:

- Pra mim, esses caras não é bom de bola. Eles começaram a falá em estrangeiro, um estranhô o outro, os dois foram se esquentando, esquentando, e aí aquele ali, ó, que também fala brasileiro, pôs a mãe no meio. Levô uma bolacha e ficô doido: enfiô o braço no focinho do outro. Aí os dois rolô no chão.

Para a sorte do boy, Aristarco e Praxedes continuavam desacordados.

(DREWNICK, Raul.O Estado de São Paulo,Caderno 2, p. 2, 1998)

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